Moedas digitais: como afetam o sistema financeiro e as soluções dos bancos centrais

As moedas digitais emitidas por bancos centrais são construídas para evitar problemas com a intermediação financeira, um receio entre as instituições do setor. Alcance limitado, contratos inteligentes e foco em pagamentos reduzem o potencial disruptivo dessas novas formas do dinheiro.
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Instituto Propague
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O papel que as moedas digitais emitidas por banco central (CBDCs) irão assumir na intermediação financeira é uma questão chave no debate sobre o futuro do dinheiro.

As moedas digitais já são realidade na China, no Caribe e estão sendo estudadas em muitos outros lugares, inclusive no Brasil. Apesar dos benefícios destacados pelas autoridades monetárias, representantes das instituições financeiras se preocupam sobre o que a emissão de uma moeda digital significará para a principal atividade econômica dos bancos.

Por que as moedas digitais do banco central podem ser um problema para a intermediação financeira?

As instituições financeiras dependem dos depósitos dos clientes para poder realizar investimentos e as concessões de crédito, em troca da qual recebem juros. Trata-se da intermediação financeira, que é a principal atividade dos bancos em uma economia.

Quando o banco recebe um depósito, parte do dinheiro deve ser depositado em uma conta no Banco Central (reservas compulsórias) e o restante é emprestado para pessoas e empresas, que pagam salários, serviços e produtos. Com esse processo, os bancos literalmente criam moeda na forma de depósitos bancários.

Este fluxo só funciona porque as pessoas e empresas superavitárias confiam nos bancos para deixar seu dinheiro parado.

Competição entre moedas digitais e os depósitos bancários em instituições financeiras

As moedas digitais emitidas pelos bancos centrais têm o mesmo valor que uma cédula impressa pela Casa da Moeda e são igualmente garantidas pelo Banco Central.

Por isso, as CBDCs são um pouco diferentes do dinheiro que a sociedade mantém depositado em contas nas instituições financeiras, pois estas podem vir a falir, o que não acontece com um banco central.

Dependendo da formulação que o banco central der para a moeda digital, ela pode ficar depositada em uma conta direta entre cidadãos e a autoridade monetária, e não participa do fluxo da intermediação financeira descrito acima. Ou seja, haveria uma desintermediação financeira.

Redução dos depósitos como limitante à operação dos bancos comerciais

No nosso exemplo na imagem acima, imagine o cenário em que o cliente inicial, que depositaria mil reais no Banco A, escolhe, na verdade, guardar esse dinheiro na forma digital em uma conta com o Banco Central.

Nesse caso, o Banco A teria 800 reais a menos para emprestar ao público, o que também refletiria sobre os demais bancos no sistema financeiro. O resultado seria um impacto negativo sobre as receitas do setor.

Desenho das CBDCs deverá evitar o risco de corridas bancárias

Um problema mais sério levantado tanto por instituições privadas quanto pelos próprios bancos centrais é que, em um contexto de incerteza, se o público desconfia que haverá uma crise financeira ou que seu banco pode vir à falência, as CBDCs viabilizariam uma versão moderna da “corrida aos bancos”. Isto é, a conversão instantânea dos depósitos bancários para a moeda digital do banco central.

Esse foi um dos argumentos levantados por Jens Weidmann, presidente do banco central da Alemanha, para justificar a cautela do Deutsche Bundesbank em considerar a implementação de uma CBDC na Europa.

“A CBDC pode tornar-se um substituto muito próximo dos depósitos bancários e, em tempos de estresse, a atratividade da CBDC versus um depósito bancário vai inclusive aumentar. Isto poderia significar que aumenta o perigo de uma corrida bancária,” afirmou durante evento do Banco de Compensações Internacionais (BIS) em março.

A resposta dos bancos centrais na construção de moedas digitais

Para aproveitar todos os benefícios que as moedas digitais podem oferecer no futuro, os bancos centrais precisam então impedir que elas venham a competir com os depósitos bancários.

Os modelos de CBDC em operação com o público estão apostando na integração das instituições financeiras e de pagamento ao desenho das CBDCs para mitigar esse risco. Além disso, há uma limitação dos valores que podem ser mantidos em CBDC e o controle das funcionalidades da moeda digital.

Por fim, é interessante notar que os lugares onde a moeda digital está mais avançada – no Caribe e na China – são justamente onde há um baixo grau de bancarização e, na verdade, a CBDC pode atuar como um primeiro vínculo entre a população e o sistema bancário tradicional.

Preferência dos bancos centrais é pela abordagem em dois níveis

Os bancos centrais têm demonstrado preferência por arquiteturas de CBDCs em dois níveis. Nesse tipo de estrutura, o banco central é o emissor da moeda digital e pode ser também o administrador do sistema de liquidação das transferências, mas são as instituições financeiras autorizadas que abrem contas para o público.

Este é o caso do Sand Dollar, a moeda digital das Bahamas e primeira CBDC do mundo. Lá, existe inclusive a possibilidade de conectar uma conta bancária pré-existente com a carteira digital onde o Sand Dollar fica depositado.

Na China, o projeto do yuan digital, oficialmente chamado Pagamento Eletrônico por Moeda Digital (Digital Currency Eletronic Payment, ou apenas DCEP), está sendo desenvolvido em conjunto pelo banco central chinês, banco comerciais e gigantes da tecnologia, a exemplo da Tencent, dona do WeChat Pay e o Ant Group, do AliPay.

Seis bancos públicos fazem a distribuição da moeda digital para os cidadãos chineses que participam dos testes piloto. A gigante do e-commerce JD.com também declarou em abril deste ano que está impulsionando o projeto do DCEP pagando salários de alguns funcionários com a moeda digital.

Com essa divisão de funções, aproveita-se a capilaridade e as estruturas que as instituições financeiras já possuem para atender o público, reduzindo o peso administrativo que recai sobre o próprio BC.

Esse modelo em dois níveis também contribui para a manutenção do papel das instituições financeiras no mundo com moedas digitais. Além disso, possibilita que as próprias criem serviços e produtos para seus clientes baseados na moeda digital.

Haverá poupança com moedas digitais do banco central?

A questão chave para reduzir o risco da desintermediação financeira com a introdução da moeda digital é evitar que cidadãos utilizem esse ativo como principal meio de reserva de valor.

A verdade é que, até o momento, não há indícios de que os bancos centrais enxerguem as CBDCs como a forma principal da moeda oficial, mas sim como um complemento ao dinheiro físico e os depósitos nos bancos privados.

A evolução das CBDCs no cenário internacional sugere que os bancos centrais estão privilegiando a função de meio de troca, isto é, a moeda digital enquanto facilitadora de pagamentos.

Nas Bahamas, os residentes podem manter no máximo 8 mil dólares na forma digital, com um limite de 10 mil dólares transacionados por mês por pessoa.

Ainda, vale mencionar o poder dos smart contracts para regular a demanda pela moeda digital. Com esses “contratos inteligentes”, o Banco Central programa as moedas digitais para terem uma remuneração automática a um valor x.

Por enquanto, as moedas digitais já implementadas não remuneram os detentores – para obter algum rendimento pelos recursos parados, as opções de poupança e investimentos junto às instituições financeiras seguem sendo as alternativas.

Caso a funcionalidade de remuneração de depósitos em CBDC seja implementada, com o smart contract o banco central poderá ajustar periodicamente o incentivo que o público tem para manter depósitos na moeda digital ou no sistema bancário tradicional.

Na Europa, o Banco Central Europeu estuda inclusive a possibilidade de remunerar o euro digital com taxas de juros negativas, como forma de estimular a economia fazendo as pessoas gastarem mais dinheiro em vez de deixá-lo parado em uma conta.

Moeda digital chinesa reintroduz os bancos tradicionais na competição pelo mercado de pagamentos

Na China, o yuan digital deverá servir como infraestrutura comum para pagamentos digitais que pode ser acessada tanto pelas Big Techs quanto pelas instituições financeiras tradicionais.

Ou seja, a moeda digital poderá ser um backup para os pagamentos digitais via aplicativos já estabelecidos no mercado com o duopólio do WeChat Pay e o Alipay, mas também servirá de base para novos arranjos de pagamento.

Assim, a moeda digital deverá impulsionar a competitividade entre os diferentes agentes.

“Os bancos devem ser os principais beneficiários do yuan digital porque o yuan digital tem taxas zero, o que é mais competitivo do que as plataformas de pagamento eletrônico existentes”, disse Chris Liu, um gestor de fundos da Invesco em Hong Kong ao jornal South China Mornington Post. “Os bancos poderiam conquistar uma fatia do mercado a partir daí”.

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