Em um ano em que as moedas digitais emitidas pelos bancos centrais foram protagonistas nas discussões sobre regulação no mercado financeiro, a constante busca e crescente adesão de economias emergentes e em desenvolvimento ao uso de criptomoedas tem sido um fenômeno de destaque. Enquanto países desenvolvidos parecem seguir as recomendações de instituições financeiras como o FMI e desenvolvem seus projetos de forma mais lenta e cautelosa, economias em desenvolvimento abraçaram a ideia e se movem mais rapidamente por terem enxergado nas moedas digitais uma oportunidade para a preservação de suas economias.
Moedas Digitais na América Latina: o debate sobre CBDCs vs. Criptomoedas
O debate referente à possibilidade de coexistência de CBDCs e Criptomoedas em um mesmo universo financeiro continua inflamado no cenário global, com diversos países enxergando as moedas digitais próprias dos Bancos Centrais como substitutas para stablecoins e criptomoedas. Uma rápida análise da América Latina e Caribe mostra que a discussão tem recebido atenção especial na região, mas por motivos diferenciados. A região, inclusive, tem países seguindo abordagens diferentes. De um lado, o pioneirismo das CBDCs em circulação vindo de Bahamas, do outro, a inovação de El Salvador como primeiro país a regulamentar o Bitcoin como moeda nacional oficial de adesão obrigatória.
Esse cenário acontece em um contexto de economias que têm como ponto comum serem altamente dolarizadas, pressionadas pela alta inflação e que buscam alternativas que possam funcionar como reservas de valor. Em meio a essa conjuntura macroeconômica, o debate entre moedas digitais privadas e públicas traz o questionamento sobre a capacidade de as CBDCs atenderem a essas demandas, de modo que, mesmo que sejam implementadas por outros motivos, não seriam substitutas às criptomoedas. Estas últimas, ainda que sejam altamente voláteis e tenham dificuldade de operar como reserva de valor, acabam sendo vistas como alternativas melhores à oferecida pela moeda nacional, ainda mais no caso das stablecoins, que trazem uma promessa de menor volatilidade.
Embora o projeto de moedas digitais oriundas de Bancos Centrais seja uma das recomendações do FMI para objetivos como estruturação fiscal, aumento de inclusão financeira, resiliência e segurança nas transações financeiras de economias emergentes, o maior desafio a ser enfrentado por esses países ainda é lidar com a alta inflação e perda de identificação com a moeda nacional, problema para o qual as CBDCs não têm sido apontadas como solução.
Moedas Digitais como reserva de valor e a experiência da América Latina
Como o objetivo das CBDCS é atuar como moedas fiduciárias em formato digital, emitidas pelo Banco Central de cada país e com validade corrente automática, reforçando a centralização das transações financeiras e estruturação da política fiscal, o argumento de quem questiona a adoção de CBDCs como substitutas de criptomoedas é que nada se altera no que tange a fragilidade da moeda frente ao mercado internacional: as moedas nacionais continuariam reféns do Dólar americano e, consequentemente, da flutuação do câmbio e da alta de preços.
Em decorrência disso, as criptomoedas, que são desvinculadas de uma instituição financeira, acabam mantendo seu espaço cativo na procura popular. Mesmo com os mais recentes relatórios mostrando o downgrade do Bitcoin como favorito no universo cripto e a flutuação do seu valor de mercado, o criptoativo não perdeu seu protagonismo entre grandes cidades latino-americanas que continuam em busca de alternativas para minimizar os impactos das desvalorização das suas moedas.
É possível, então, que países que possuem desconfiança com sua moeda local e reservas de valor tão vulneráveis prefiram se arriscar com as criptomoedas ao invés de focar em projetos de moeda digital do seu Banco Central? Ainda é cedo para dizer, mas alguns casos se tornaram destaques por apontar nessa direção e exemplificar dificuldades que CBDCs podem enfrentar em tais conjunturas quando se trata de minar o caso de uso de criptomoedas e stablecoins.
A Venezuela, por exemplo, é um país que seguiu com o projeto de regulamentação e implementação das CBDCs e, em 2021, já colocou o Bolívar Digital para circulação. Ainda assim, continua sofrendo com os efeitos negativos da dolarização em seu território e a constante necessidade de conversão e atualização da sua moeda. Nesse mesmo ano, a já alta inflação anual retornou ao patamar de hiperinflação ao alcançar a marca de 6500%, gerando uma fuga forçada para stablecoins atreladas ao US Dólar e criptoativos descentralizados além de uma estagnação da CBDC.
O caso argentino: indo contra a tendência
Entre regulações de cripto e circulações de CBDC, é perceptível que as economias latino-americanas estão acompanhando as tendências internacionais do sistema financeiro e buscando reduzir ao máximo os choques e riscos de transição para uma economia mais digital e resiliente. Mesmo que não para usos de política monetária e sem a intenção de substituir criptomoedas e stablecoins, os países estão pensando em CBDCs para outras finalidades (as já destacadas pelo FMI). Contrária às tendências de regulação de criptoativos e adotando postura de inércia no debate de moedas digitais do Banco Central, o exemplo a ser estudado é o da Argentina.
Hoje, além de a Argentina atingir a maior taxa inflacionária entre os países do G20 monitorados pela OCDE, com incríveis 50,7% de inflação em 2021, enquanto a média dos países do G20 alcançou a marca de 6,5%, as principais autoridades do país parecem não chegar a um consenso em relação ao futuro das moedas digitais. Ao mesmo tempo em que o presidente da República, Alberto Fernández, se mostra disposto a debater o assunto ainda que declare sua incerteza e falta de confiança por vezes em CBDCs e outras em criptomoedas; o presidente do BCRA, Miguel Pesce, afirmou que a Argentina não tem intenção ou planos futuros de levar a frente o projeto de CBDCs, muito menos regular criptomoedas.
O cenário já instável da Argentina fica mais vulnerável com a ausência de um posicionamento em relação ao tema. Essa instabilidade institucional e financeira abre espaço para que o país, hoje, seja uma das maiores vitrines de criptomoedas da América Latina. Propagandas em massa, cursos de investimento divulgados em rede nacional e uma plataforma de bolsa de criptos como principal patrocinador da Liga de Futebol Profissional são componentes do cenário atual argentino, de forma totalmente exposta e cotidiana, sem previsão de regulação.
Criptomoedas na Argentina: um mercado sem interferência e com expectativa de auto-regulação
Desde o final de 2020 e, principalmente, ao longo de 2021, criptomoedas já são as saídas de emergência conhecidas para a população argentina. Enquanto quase 50% dos estabelecimentos e comércio da região da Patagônia já opera com Bitcoin como forma de pagamento, a Argentina lidera entre os países que registram o pagamento da população assalariada em criptomoeda.
Segundo pesquisa da Bloomberg, a pressão cambial prejudica largamente a já frágil economia Argentina e a utilização de criptoativos passa a ser enxergada por parte da população como uma forma ideal de escapar disso. Em 2021, essa pesquisa apontou que “se uma empresa pagar US $1000 por meio do sistema bancário, o funcionário receberia cerca de 109.000 pesos argentinos segundo a taxa de câmbio oficial. Mas se o trabalhador for pago em criptomoeda, a troca pode ser feita pela taxa de câmbio não regulamentada, resultando em cerca de 200.000 pesos – uma diferença de 83%.”
Essas situações levam ao questionamento se versões digitais de moedas tão desvalorizadas em economias frágeis poderiam representar o tipo de solução que CBDCs se propõem a ser. Apesar do mesmo questionamento aparecer em outros países latinos, a Argentina chama a atenção por ser mais taxativa em não se mover na direção de uma CBDC, ainda que para outros usos.
Amanda Stelitano é assistente de pesquisa do Instituto Propague e mestranda em Economia Política Internacional pela UFRJ.
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